Esta semana, a Câmara dos Deputados aprovou por massiva maioria a Proposta de Emenda Constitucional de número 47/2003, que estabelece a inclusão do direito à alimentação no artigo 6º da Constituição Federal brasileira. Uma proposta que altera a Constituição tem que ser votada quatro vezes: duas no Senado e duas na Câmara. O Senado já aprovou esta matéria em definitivo, agora a Câmara deverá confirmar uma segunda vez os 374 votos a favor (foram apenas dois votos contrários e uma abstenção) e finalmente corrigir esta omissão histórica. O artigo 6º diz quais são os direitos sociais de cada cidadão brasileiro, e ali não consta o direito à alimentação. Faltando pouco para mudar este quadro, cabe perguntar: o que acontecerá depois?
A pergunta procede, entre outras razões, porque foi feita durante a votação em primeiro turno na Câmara, na noite do dia 3 de novembro. Um deputado paranaense, que diz ter votado a favor da proposta, foi ao parlatório dizer aos demais: “Se tivesse algum efeito, nós teríamos respeitados os direitos à educação, à saúde, ao trabalho e à segurança neste país”. Referiu-se a alguns dos direitos sociais que já constam do artigo 6º desde 1988. Seu questionamento revela algo da miopia política de certos setores da sociedade. Certamente, a luta travada por diversas organizações sociais e levada ao Legislativo pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional não foi apenas para alterar a redação de um artigo legal, mesmo sendo ele parte da maior lei do país.
Isto nos leva à necessidade de definir o significado de alterar o texto de um artigo sobre direitos sociais da Constituição do país que tem uma das sociedades mais desiguais do mundo. O fato de que a educação tenha sido alçada à condição de direito social de todos em 1988 não foi suficiente para que todos tivessem educação pública de qualidade. Razões para isto: contingenciamentos de verbas federais, má gestão de estados e municípios, baixa integração entre redes de ensino público e a sociedade, corrupção etc etc etc. Porém, o fato de que o Estado é obrigado pela Constituição a fornecer educação pública gratuita e de qualidade muda tudo. É o que possibilita uma série de ações sociais de caráter político, jurídico, solidário, em nome do atendimento deste direito. Sem esquecer que o não fornecimento de educação pública caracteriza uma prefeitura, por exemplo, como violadora de um direito constitucional. Direitos obrigam o Estado, que pode e deve ser cobrado e responsabilizado quando deixam de cumpri-los.
O mesmo vai passar a valer para a alimentação. Considerada atualmente como um direito humano, ao se tornar direito social do artigo 6º ela vai obrigar o Estado a formatar políticas públicas específicas para garantia deste direito. O que significa, potencialmente, transformar conceitos e normas de produção, distribuição, comercialização e consumo de alimentos no país. Significa, potencialmente, reequilibrar as opções políticas hoje favoráveis ao agronegócio exportador, e fazer pender a balança dos recursos públicos para a produção de alimentos de qualidade para consumo da sociedade. Significa, potencialmente, reeducar a sociedade – e principalmente as crianças – em direção a uma cultura alimentar saudável e mais natural. Significa, potencialmente, reduzir o poder das indústrias de alimentação rápida e processada, com os benefícios que isso traria para a saúde pública. Significa, potencialmente, a redução a zero do número de pessoas em situação de fome ou insegurança alimentar. Significa potencialmente, enfim, obrigar o Estado a se posicionar politicamente em favor da saúde e bem estar da cidadania e do meio ambiente.
O uso repetido do advérbio potencialmente é para lembrar que tudo isso pode acontecer, dependendo do quanto a sociedade se empenhe para fazer a letra da lei virar realidade do dia a dia.
Fonte: www.fase.org.br
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